quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Uma Lição de Vida - Sr. Francisco (AcD Visual)


A semente desta postagem conjunta foi lançada, irrigada e iluminada pela sugestão do amigo Nilo Resende, do Blog "Companheiros de Corrida", que me propôs o desafio para descrever e compartilhar a experiência de corrida que tive no dia 04 de setembro de 2011, na cidade de Goiânia, Goiás. A meu juízo de valor, aquela experiência transcendeu todas as minhas expectativas.

O propósito!!!


Em primeiro plano, gostaria de ressaltar que a construção deste relato tardio, se dá, exclusivamente, em decorrência de um dos pilares de sustentação do blog "Correr é Pura Paixão", qual seja: compartilhar as lições recebidas dos abnegados corredores de rua.

Ao contrário da tradicional linha que adoto nos relatos sobre as corridas e as aventuras que participo, a ocasião exige que eu comece o texto de forma diferente, com algumas indagações, justamente para instigar o juízo de valor do amigo leitor.


Correndo no Escuro!!!


Amigo leitor, você seria capaz de correr e concluir os 21 Km de uma meia maratona, com os olhos vendados ou, na melhor hipótese, enxergando pouco menos de 10% de sua acuidade visual? - Se o meu prognóstico não falhar, acredito que sua resposta será "não"!!!

Então vou refazer a pergunta.  E se você estiver acompanhado de um guia ou orientador, será que a tarefa se tornará menos complicada? - Nessa segunda situação, você acredita que conseguiria concluir a prova?


A luz no final do túnel!!!


De onde surgem os guias e orientadores do atleta com deficiência visual (AcD visual)? - O que é preciso para ser guia ou orientador do AcD Visual? - Quais os predicativos e atributos do guia ou orientador do AcD Visual?

Imaginem que esse turbilhão de perguntas habitaram a minha mente quando recebi o convite do Senhor Francisco, para acompanhá-lo como guia ou orientador no decorrer dos 21 Km da Meia Maratona EM Movimento, disputada na cidade de Goiânia, Goiás, no dia 04 de setembro de 2011.


Na véspera da prova, sábado, saí de Brasília com destino a Goiânia, para no dia seguinte participar dos 21 Km da Meia Maratona EM Movimento, ou seja, a princípio seria mais uma prova disputada em terras goianas.

Essa prova, idealizada e organizada pela incansável Eduarda Arantes, da Associação Goiana de Esclerose Múltipla (AGEM-GO), tem por propósito chamar a atenção da população, divulgando, esclarecendo, conscientizando e desmistificando a esclerose múltipla, uma doença autoimune, silenciosa e de difícil diagnóstico.

O tempo não pára!!!


Alguns corredores seguem uma rotina antes das corridas. No meu caso específico, após os preparativos elementares com relógio, tênis, calção, bermuda, camiseta, óculos escuros e boné, tento manter a hidratação o máximo possível e pouco antes da largada, vou ao banheiro para eventualmente eliminar o excesso de líquido ingerido.

Assim fiz naquele dia. Ocorreu que a largada da prova atrasou um pouco, me obrigando a ir uma segunda oportunidade ao banheiro, ao retornar, faltando menos de cinco minutos para a largada, me deparei com o Senhor Francisco, que indagava minha esposa, sobre a possibilidade dela ser o seu guia ou orientador naqueles 21 Km.


Por alguns segundos aquilo me surpreendeu. Fiquei totalmente absorto, tentando entender do que se tratava. Quando enxerguei uma pequena vareta na mão direita daquele corredor, percebi que tratava-se de AcD Visual.


Emoção à flor da pele!!!


Imediatamente, emocionada e sensibilizada com o fato do Sr. Francisco não ter alguém para lhe auxiliar, minha esposa pediu-me para acompanhá-lo naquela prova, com a seguinte frase: "Não vai lhe custar nada". Ganhei um beijo de presente!!!

É evidente que num primeiro momento eu não conseguia entender como um corredor com aquelas características, estava, a menos de cinco minutos da largada, sem o seu habitual guia ou orientador. O fato é que não havia muito tempo para os esclarecimentos necessários e aquele camarada não teria outra pessoa que reunisse condições para acompanhá-lo. Você vai entender o porque mais a frente!!!


O apelido fala quem você é!!!


Puxando pela memória, recordo-me que em dado momento, perguntei ao companheiro sobre o seu nome e ele me respondeu: "Chico Doido". Fiquei na dúvida se havia entendido corretamente. Repliquei: - O Senhor pode falar novamente o seu nome? - ele repetiu "Chico Doido" e sem muita cerimônia me entregou uma pequena corda que uniria o meu antebraço direito com o antebraço esquerdo dele.

Aproximava-se o horário da largada para a categoria AcD e a angustia batia à porta. Eu temia prejudicar aquele destemido corredor e consequentemente não cumprir a tarefa.


Foto: Fernanda Elisa
Naquele instante, eu não tinha a mínima noção de como agir, de qual ritmo de prova deveria ser empregado ou como me comportar diante dos obstáculos que estariam à nossa frente.

No olho do furação!!!


Logo nos primeiros metros de prova, consegui entender a ironia do apelido "Chico Doido". Quando soou o tiro de largada (Categoria AcD), parecia que estávamos fazendo tiros de 400 metros. Era assustador a velocidade empregada pelo Senhor Francisco no início da prova, especialmente com aquela limitação orgânica.

Eu nunca havia feito uma largada com tanta velocidade. Confesso que no início, fiquei extremamente preocupado com o ritmo alucinado empregado pelo "doido", me desculpe, pelo Sr. Francisco.


Pensando positivamente, torci para não quebrar e depois me tornar motivo de gozação da resenha semanal do CORDF, uma vez que os amigos Sebastião e Valdenir Feliz, testemunhas oculares do acontecido, também estavam correndo a prova de 10 Km.


De volta à zona de conforto!!!


À medida que o terreno permitiu e o tempo foi passando, o ritmo de prova foi se ajustando naturalmente, com o pace cadenciado já dava para orientá-lo sem ficar muito ofegante.

Nos primeiros Kms percebi que "Chico Doido" insistia em puxar a cordinha para o lado direito. A explicação daquele gesto era por demais simples. A pouca acuidade visual do olho direito, era melhor do que a do olho esquerdo.


O percurso inicial era em descida. Saímos da Rua 4, para passar pela Praça do Avião, Avenida República do Líbano, em direção à Avenida Leste Oeste, sentido bairros. O trajeto da prova estava todo balizado por cones e fiscalizado pela Polícia Militar do Estado de Goiás, assim, o quesito segurança estava sob controle.


Por volta do oitavo Km, redobrei a atenção quando nos aproximamos do cruzamento da Avenida Leste Oeste com a Avenida Anhanguera, uma vez que nosso destino seria a famosa e interminável subida da Avenida Castelo Branco.


Um pouco antes da subida conversei com "Chico Doido" para avisá-lo que iríamos enfrentar um longo paredão e que ele tentasse economizar energia na subida. Fazia muito calor, assim, procurei a sombra das árvores frondosas que ficam no canteiro central.


Metade do caminho!!!


Quando chegamos na parte mais alta do percurso, era o momento de fazer um retorno e voltar no sentido contrário da Avenida Castelo Branco. A preocupação quadruplicou!!! - Imagine você o quanto é complexo correr em uma ladeira íngreme e sem enxergar os obstáculos, especialmente os enormes quebra molas que são instalados para reduzir a velocidade dos veículos.

Enquanto corria, refletia sobre tudo aquilo que estava acontecendo. Nossa conversa ultrapassava as fronteiras da Meia Maratona EM Movimento. Perguntei sobre seus treinamentos, suas provas, quem o auxiliava no dia a dia e nas corridas. Enfim, indaguei-o-o sobre várias situações que são os eternos obstáculos do deficiente visual.


Destino: Linha de Chegada!!!


Aquele cruzamento com a coluna dorsal da cidade já podia ser visto novamente. Minha preocupação era com os ônibus articulados que circulam pela Avenida Anhanguera.

Me preocupei tanto que acabei esquecendo dos obstáculos do terreno. Havia uma depressão na pista, causada pelo excesso de peso dos coletivos. Quase coloquei tudo a perder, "Chico Doido" tropeçou naqueles "calombos" e só não caiu porque, instintivamente, corri para segurá-lo com as duas mãos. Confesso que não imaginava que tinha aquela velocidade de reação.


Percorremos novamente a Avenida Leste Oeste, sentido centro da cidade. Subimos a Avenida República do Líbano, no caminho da Praça do Avião, corremos por algumas ruas residenciais até encontrar com a famosa Avenida Goiás, no sentido da Praça Cívica.


Orgulho de ser Brasileiro!!!


Em dado momento, comentei que faltava pouco menos de 1 Km para concluirmos a prova. Diante daquela informação, ele me pediu para ajudá-lo com a Bandeira do Brasil que estava enrolada em seu corpo, embaixo de sua camiseta de corrida.


Foto: Valdenir Feliz (CORDF)
Metodicamente, ele me ensinou como faríamos quando faltassem 100 metros para a linha de chegada, na Rua 4. Ele iria segurar a bandeira com a mão direita e eu, no sentido oposto, deveria segurar com a mão esquerda, de tal sorte que a Bandeira do Brasil estaria tremulando acima de nossas cabeças. Uma mensagem subliminar sem igual!!!


Um gigante chamado "Francisco"!!!

Sob muita emoção, concluímos os 21 Km da Meia Maratona EM Movimento, ostentando os números 2077 e 2098, em perfeita harmonia, por volta de 1 hora e 45 minutos.



Reescrevendo um capítulo da imensa bibliografia do gigante!!!

Simplesmente espetacular!!!


Na oportunidade, "Chico Doido" subiu ao pódio para receber o troféu de 2º colocado na Categoria AcD.

Por um equívoco da equipe de cronometragem, nossos tempos não foram registrados, todavia, nunca é tarde para consignar o registro daquele feito do abnegado gladiador do asfalto "Chico Doido".


Após aquela experiência ímpar, já encontrei o mestre em duas oportunidades, ambas no ano de 2012. A primeira por ocasião da 6ª Maratona Internacional de Foz do Iguaçu e a segunda, quando da realização da 1ª Maratona EM Movimento, na cidade de Goiânia, Goiás.


A parceria com o amigo Nilo Resende, do Blog Companheiros de Corrida, possibilitou recuperar fatos e imagens de um capítulo que foi deixado em segundo plano, e que o tempo, lentamente apagaria da imensa bibliografia do gigante chamado "Francisco".




Ultra abraço e que os bons ventos continuem soprando a nosso favor!!!


Dionisio Silvestre



15 comentários:

  1. Quem resiste a um pedido carinhoso da esposa, e pelo teu relato emocionado acho que quem foi agraciado com uma corrida sem igual foi você. Parabéns pelo altruísmo e por não ter vacilado, mesmo sem saber como agir você fez tudo de maneira instintiva e pra mim se saiu muito bem, fez isso de novo? Foi Guia? Me parece algo tão generoso, quem sabe um dia um chico louco não cruza o meu caminho, desde que ele tenha um pace de tartaruga =D
    Parabéns.
    Bons treinos
    Ju

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    1. Olá Ju,
      Leitura perfeita, em toda aquela aventura, foi o "Silvestre" quem saiu agraciado com uma corrida sem igual. Ainda não repeti a missão, todavia, surgindo nova oportunidade agirei com o mesmo espírito. Quando você mencionou o pace de tartaruga, lembrei-me da minha eterna equipe "Os Travados do Parque", cujo logo reproduz uma tartaruga. A propósito, aqui no blog você encontrará alguns relatos em que me autodenomino "Quelônio do Cerrado". Resumo da ópera: também tenho um pace de tartaruga. Ultra abraço e bons Kms

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  2. Silvestre, simplesmente, Fantástico!!!!
    Cheguei a ficar sem palavras pela emoção que você deu à narrativa.
    Além disso, você recuperou muitas passagens interessantes desta meia-maratona goiana.
    Verifica no sétimo parágrafo a data que você colocou. Lá está citado "no dia 04 de setembro de 2014". Com certeza o ano é outro.
    É uma bela matéria e que precisa circular.
    Vamos trabalhar juntos nesse sentido. Vou compartilhar a matéria colocando um link para as pessoas acessarem o seu blog. O que você acha?
    Um grande abraço e, mais uma vez, Parabéns!
    Nilo

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    1. Nilo,
      Parabéns por ter lançado, irrigado e iluminado a semente que proporcionou esta singela homenagem ao guerreiro "Chico Doido". Sua sugestão possibilitou que eu recuperasse, mesmo que de forma tardia, um capitulo esquecido e não escrito na bibliografia daquele gladiador do asfalto. Obrigado pela parceria, já efetuei as correções no texto. Ultra abraço e nos vemos no caminho!!!

      Silvestre

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  3. Silvestre, a matéria já está no blog. Espero que goste. Mais uma vez, muito obrigado por compartilhar esta bela e inspiradora história. Confira como ficou por lá: http://www.companheirosdecorrida.com.br/site/?p=1474
    Abraços!
    Nilo

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    1. Nilo,
      Adorei o viés empregado na narrativa. Uma ideia me ocorreu, reeditar meu texto para inserir o link do blog "Companheiros de Corrida".

      Silvestre

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  4. Silvestre,
    Deve ter sido uma experiência gratificante e incrível. Parabéns!
    Você já sabe se vai participar da ULTRAMARATONA DE 300 KM MOSSORÓ X NATAL (23 e 24 de novembro)?
    Aguardamos os bons companheiros do Brasil Central.
    Abração!
    Gilmar
    081 9168 9134 CLARO
    081 3454 0423 GVT

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    1. Grande Gilmar,

      Este ano não vamos conseguir participar da Ultramaratona 300k Mossoró X Natal, tenho certeza que será um espetáculo de prova, sempre bem organizada, com muito camaradagem e com um grau de dificuldade para quebrar elite.
      Aquele abraço,
      Samuel Toledo

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    2. Olá Gilmar,
      Em mais uma oportunidade, obrigado pela visita e pelas palavras incentivadoras. De fato foi uma experiência incrível e gratificante que o mundo da corrida pode nos possibilitar!!! Ultra abraço,

      Silvestre

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  5. E aí Dionísio Silvestre, que belo post, bela história de vida do Francisco que dá uma lição aos doidos que se entregam no primeiro obstáculo que se apresenta.

    Emocionante ler e de cara achei que vc teria o segurado a prova todo, dada a largada espetacular ...

    Parabéns, mto legal.

    abcs
    Rodrigo Augusto
    corridaderuams.blogspot.com.br

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  6. Rodrigo,

    Quando fiz inscrição para aquela prova, tinha a meta de sair sub 01h e 30. Com o convite do "Chico Doido" deixei aquele objetivo de lado. Em 2012, corri novamente a prova, concluindo o percurso em 01h 31min, fui o 3º lugar na faixa 45/49, todavia, era outro percurso, na Rodovia que liga a cidade de Trindade a Goiânia. Na Golden Four Asics - Brasília 2012, corri os 21 Km em 01h 32min. Daí, o ritmo de 01h 45min foi tranquilo. O sufoco foi os primeiros Kms!!! Além de emocionante, a história do gigante Francisco deixa uma tremenda lição de vida.

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  7. Caramba Dionísio! Que espetáculo de relato. Fiquei emocionado!
    Parabéns por ter dedicado seus 21km para auxiliar o Sr. Chico Doido (que apelido heim! rsrs). Com certeza foi uma experiência e tanto, ainda mais por ter sido assim de surpresa. Mas, pensando um pouco sobre o desenrolar da história, parece-me que, de certa forma, quem foi guiado nessa prova foi você. Estou certo?
    Parabéns pelo altruísmo e pelo bom desempenho na prova. Obrigado por compartilhar conosco esse momento.

    Abraços

    Danilo Confessor
    Blog Confissões de um Confessor

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    1. Olá Danilo,
      Esse episódio, que só a corrida pode nos possibilitar, é anterior à criação do "Correr é Pura Paixão", em resposta a semente lançada pelo amigo Nilo Resende, tomei coragem para redigi e compartilhar aquela aventura maravilhosa. Quanto ao desenrolar da história, você está correto... quem estava na direção era o gigante Francisco. Ultra abraço e bons treinos!!!

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  8. Poucos sabem, mas o meu interesse em melhorar a velocidade é justamente esse ...ser guia. Tenho certeza que essa troca deve fazer um bem enorme para ambos, guia e corredor.

    Parabéns, reloto emocionante!

    http://correndonaviagem.blogspot.com

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  9. Drica,
    Foi uma aventura renovadora e sem precedentes em minha vida de corredor. Anote o que falo hoje, pois amanhã, quando for possível, você vai compreender a dimensão da emoção que senti naquela Meia Maratona. Ultra abraço,

    Dionisio Silvestre

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Aos leitores do blog "Correr é Pura Paixão" deixo meu profundo agradecimento. Aguardo seu comentário, uma vez que a participação de vocês é de grande importância para o aprimoramento dos relatos.

Ultra abraço,

Dionisio Silvestre